Caça-níqueis:
diversão, a princípio, inofensiva
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(Arquivo
Jornal NippoBrasil)
Minha
mulher me mandou embora de casa, pois estávamos muito endividados
e eu não tinha onde morar. Estava desempregado e só
tinha um real na carteira. Pensei em comprar meia dúzia
de bananas para comer, para passar quatro dias antes de receber
a segunda parcela da minha indenização de trabalho,
que era de R$ 6 mil. Passei pela carrocinha de bananas, mas, na
outra esquina, havia um bar e comprei quatro moedinhas para jogar
nas máquinas de caça-níquel, pensando que
poderia dobrar esse dinheiro. Puro engano. Perdi tudo, passei
fome, frio e estava quase virando um mendigo.
Essa
é somente uma parte da história vivida por Jorge,
de 43 anos, após tornar-se um jogador patológico
- na linguagem médica, significa a pessoa viciada por jogos
que envolvem apostas em dinheiro (veja box com as fases).
O vício
pelo jogo começa por diversão, uma forma de lazer
que os jogadores encontram para fugir dos problemas, descarregar
as tensões, o estresse. Aos poucos, o hábito de
jogar começa a tornar-se freqüente até o momento
em que o jogo passa a dominar a vida dessas pessoas, fazendo com
que elas deixem de cumprir compromissos, percam patrimônios
e economias, passem a fazer dívidas enormes e comecem a
destruir as relações pessoais, familiares e profissionais.
Compulsão
Entre
os nikkeis, o vício parece vir da própria cultura.
No Japão, é muito comum - chega até a ser
um exagero - a dependência pelos pachinkos (máquinas
de jogos, em que o jogador deve controlar a velocidade de pequenas
bolas de aço que são lançadas nos equipamentos).
Com o jogo, é possível triplicar o dinheiro apostado
em apenas alguns minutos. Como todo jogo de azar, os usuários
correm risco de grandes perdas de dinheiro. Há quem chegue
a desembolsar todo o salário de um mês de trabalho
em apenas um dia de jogo. Para eles, vale o risco de sentir a
emoção de a máquina abrir (gíria
dos patinqueiros que significa vencer o jogo).
Foi
o que aconteceu com Jorge. A compulsividade pelos jogos começou
aos 10 anos, quando jogava fliperama. A ansiedade e a fissura
pelos jogos era tanta que, mesmo depois de casado, não
abriu mão de uma jogatina, seja com baralho, dominó,
placas de automóvel, par ou ímpar e até tampinhas;
tudo era motivo para uma aposta. Precisava pagar as prestações
de um apartamento. Nessa época, as pessoas falavam que
eu tinha muita sorte, então, fui até um bingo,
relembra. Já no primeiro dia de jogo, Jorge ganhou R$ 618
em uma cartela que lhe custou apenas R$ 1. Pensei: não
preciso mais trabalhar. Aos poucos, consegui montar um bom
patrimônio, mas perdi tudo.
Como
Jorge, milhares de pessoas chegam a enfrentar os mesmos problemas.
O hábito do jogo não é um defeito moral,
é uma doença, um transtorno mental, revela
o neuropsicólogo Daniel Fuentes, coordenador de ensino
e pesquisa do Ambulatório do Jogo Patológico, do
Hospital das Clínicas, em São Paulo. De acordo com
suas pesquisas, as pessoas que apresentam problemas com jogos
têm traços comuns de personalidade. Normalmente são
indivíduos perfeccionistas, ousados, curiosos e têm
uma forte tendência à liderança, ou seja,
são pessoas que estão à frente de todas as
decisões. Além disso, apresentam um coeficiente
de inteligência (QI) elevado em relação aos
padrões normais e, por isso, também podem ser consideradas
pessoas inteligentes. Outra característica é que,
além dos jogos, essas pessoas tendem a sofrer com outros
tipos de vícios, como o cigarro e o álcool.
Mulheres
se viciam mais rápido
Um
outro estudo realizado pelo Ambulatório constatou que as
mulheres são as que mais sofrem, pois chegam a se viciar
mais rápido que os homens. Segundo a pesquisa, elas levam
apenas de 2 a 3 meses para chegar ao nível mais crítico
da doença (patológico), enquanto os homens chegam
a levar 10 anos. Por outro lado, elas reconhecem mais cedo que
estão doentes e, por isso, demoram menos para procurar
ajuda. No Brasil, elas se tratam mais do que em outras partes
do mundo. Para cada jogadora compulsiva que busca tratamento há
um homem. Em outros países, para cada mulher há
5 jogadores compulsivos se tratando, diz o médico.
Foi
em busca de tratamento que Rosa, de 47 anos, resolveu procurar
os Jogadores Anônimos (J.A.), grupo de ajuda mútua
que, por meio de reuniões, auxilia os jogadores compulsivos
a encontrar forças para enfrentar os problemas. Há
um ano e meio freqüentando as reuniões semanalmente,
ela garante que ainda continua pensando nos jogos. É
uma doença que não tem cura, ainda tenho muita vontade
de jogar, mas tenho lutado bastante, pois isso acabou com a minha
vida, desabafa.
Preocupada
com o desemprego do marido, Rosa aceitou o convite de uma amiga
para freqüentar uma casa de bingo a fim de esquecer os problemas
financeiros da família. Ela acabou gostando tanto que o
número de apostas foi aumentando e, quando menos esperava,
já havia se tornado uma jogadora compulsiva. Sempre
ficava com a esperança de achar o pote de ouro. E falei
para o meu marido que ele não precisava mais procurar emprego,
pois eu iria dar um jeito em tudo, relembra. Das cartelas
de bingo, Rosa passou para as rodadas no computador até
chegar às máquinas de caça-níquel,
as quais diz ter ficado fascinada. O jogo tomou conta da sua vida
de tal forma que abandonou os filhos, o marido e o trabalho em
nome do vício. Comecei a me desequilibrar e, quando
percebi, já estava totalmente absorvida. Vivia inventando
desculpas, mentia, e só voltava para casa para tomar banho,
conta.
Tratamento
A
pesquisa do Ambulatório mostra que as pessoas estão
reconhecendo cada vez mais que o vício é uma doença
e que precisa ser tratada.
O principal
objetivo do tratamento é desenvolver a autonomia do jogador,
fazendo com que ele tenha abstinência total do jogo - como
os tratamentos de dependência química. Mas o prazo
para que consiga a recuperação irá variar
de acordo com cada jogador. Há casos em que é
necessário um tratamento medicamentoso para problemas ocasionados
por causa do vício, como a depressão, por exemplo,
diz Daniel.
A ajuda da família
O
auxílio de amigos e familiares também é muito
importante para que o jogador compulsivo consiga se recuperar.
Sônia, de 41 anos, sentiu a necessidade de buscar ajuda
quando o marido colocou em jogo a vida da família. Casada
há quatro anos, ela nem desconfiava que o marido era um
jogador patológico. Após ter ganho nenê,
minha mãe chegou para mim e falou que o Cláudio
passava as noites no bar jogando. Quando eu perguntava pra ele,
ele se desculpava dizendo que estava nervoso e que precisava se
distrair de alguma forma. E eu não levei aquilo em consideração,
lembra.
Após
consecutivos sumiços do marido e com as dívidas
aumentando, a separação era a melhor forma para
resolver o problema. Não queria me separar. No fundo,
eu queria uma solução para tudo aquilo, pois ele
chegou até a pensar em suicídio. E eu passei a sofrer
junto com ele; tinha insônia e chorava muito também.
Ele estava acabando com a minha vida e a da minha família,
lembra. Indicada por uma amiga, Sônia passou a freqüentar
as reuniões do Jog-Anon, grupo que atua em parceria com
o J.A. para amigos e familiares de jogadores compulsivos. É
muito importante o familiar também se tratar, porque o
jogador te manipula muito. Eles jogam com a sua confiança,
com os seus sentimentos e é preciso estar sempre alerta,
conta Sônia.
A doença não atinge todos os jogadores
Nem
todas as pessoas que jogam podem tornar-se viciadas. No Brasil,
apenas 3% da população é dependente. Apesar
de ser um número relativamente pequeno, é o bastante
para preocupar os especialistas, em decorrência do grande
número de casas de jogos e caça-níqueis espalhados
por todo o País.
Fim das casas de bingo
No
Brasil, as casas de bingo estão com os dias contados. O
Grupo Nacional de Combate ao Crime Organizado - formado por membros
do Ministério Público Federal e dos Ministérios
Públicos Estaduais - sancionou uma lei em que esses locais
de jogos têm até o dia 31 de dezembro para fecharem
as portas. Apesar da grande discussão em torno do assunto,
vai ser difícil impedir que um jogador compulsivo encontre
meios para apostar.
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Os nomes são fictícios para preservar a identidade
dos entrevistados.
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