Para
Nelson Rodrigues, uma faca ordinária, dessas compradas
nas feiras, era instrumento suficiente para um suicídio,
sempre motivado pelo desespero. Para o japonês, ao menos
o que nele tem embutido o espírito samurai, os dois elementos
- a faca e o desespero - não podem existir no ato derradeiro
de sua vida. O objeto ideal é o tantô, uma espada
pequena, cara e manufaturada por artesãos refinados. O
sentimento, o do resgate da honra perdida. Foi o que fez, por
exemplo, Yukio Mishima, um dos maiores nomes da literatura contemporânea.
O suicídio,
chamado de seppuku ou harakiri, deve seguir o seguinte ritual:
a pessoa toma um banho para purificar o corpo e a alma; vai ao
local da execução e senta à maneira oriental;
pega a espada e enfia no lado esquerdo do abdômen, considerado
o centro do corpo, das emoções e do espírito
do povo japonês; em seguida puxa a lâmina para cima.
A morte é lenta e dolorosa, mas o samurai não pode
demonstrar dor nem medo.
Apesar
de sombrio, o paralelo evidencia a estreita ligação
entre a lâmina e o espírito nipônico. Introduzida
no Japão feudal por volta de 900 D.C., somente dois séculos
mais tarde a espada ganhou traços próprios. Estima-se
que, entre os anos de 1300 e 1400, um desses objetos poderia custar
o equivalente a uma casa. O fabricante mais conhecido da época
era Massamune.
Nos
séculos posteriores, porém, a manufatura das lâminas
deixou de ser arte para virar máquina de guerra, e entra
em declínio. Um movimento iniciado no último terço
da Era Edo (1603 a 1868), porém, resgatou o conceito de
espada artística. Chamado de Fukkotô, teve no espadeiro
Minamoto Kiyomaro e o teórico Massahide seus maiores expoentes.
São deste período os mais belos objetos já
fabricados. Este grupo de artesãos passou a estudar
a espada clássica japonesa. O Fukkotô sintetizou
700 anos de tradição em forjamento e fornitura,
destaca Laércio Gazinhato, um grande estudioso de armas
orientais.
A cultura
do kataná, a mais conhecida das espadas, ganhou o ocidente
na primeira metade do século passado. Foram duas as principais
vias de acesso: através dos soldados americanos, na Segunda
Guerra Mundial; e pelas mãos dos imigrantes.
Hoje,
o espírito da arma nipônica pode ser detectada nos
mais variados campos. Virou tema de filmes de Hollywood; está
no esporte, através do kendô; colecionadores pagam
fortunas por um exemplar raro; crianças simulam lutas entre
clãs nos video-games; e, até nas empresas, é
usado em palestras de motivação.
O curioso
é que a arte da espada vem atraindo mais os não-nikkeis.
O interesse é uma coisa que vem de dentro, não
sei explicar o por quê. É como uma atração.
Quando era adolescente buscava o lado mais técnico da cultura.
Hoje, após algumas experiências procuro entender
a relação entre a parte espiritual e a harmonia
com os fatos cotidianos, explica Rodrigo Dantas Gonçalves,
professor universitário que escreve artigos sobre a cultura
japonesa. Este conhecimento me ajuda no auto-controle frente
aos desafios da vida e a buscar todo o potencial que existe em
mim, completa.
|
O
kataná brasileiro
O Brasil, segundo Gazinhato, é o único país,
fora o Japão, que reuniu em um determinado período
três espadeiros de kataná: Yoshisuke Oura, Kunio
Oda e Tomizo Ishida, todos imigrantes nascidos no arquipélago.
Ele fez um estudo sobre cada um deles. É importante
destacar isso. Enquanto que, nos Estados Unidos, os caras estavam
se preparando para a Guerra, aqui se fazia espada e de boa qualidade,
enfatiza. O único ainda vivo é Ishida, que está
ativo, em Mairiporã (SP).
|
Kunio Oda (1912 1992)
Também membro de uma família produtora de espadas,
Oda aprendeu a arte com o avô paterno e produziu sua primeira
lâmina aos 18 anos. Em 1957 chegou no Brasil e trabalhou na
agricultura, no interior paulista. Somente aos 56 anos, já
vivendo na capital, começou a atender encomendas. Famoso,
adotou o nome artístico Kunihiro. Produziu aproximadamente
350 unidades. Uma delas, inclusive, foi utilizada por um amigo que
cometeu o harakiri (literalmente, corte no estômago), em 1970,
razão pela qual nunca mais fabricou tantôs, espadas
apropriadas para este fim. Oda faleceu em 1992, aos 80 anos. |
Tomizo Ishida (1924 - )
Único dos espadeiros brasileiros que não
descende de famílias produtoras no Japão. Nasceu na
província de Gumma e chegou no Brasil aos 9 anos de idade.
Ishida aprendeu a arte da forja fazendo instrumentos agrícolas,
em Mirandópolis (SP), onde sua família trabalhava
em uma fazenda. Em 1949, aos 25 anos, mudou-se para Mairiporã,
cidade próxima a São Paulo. Foi relojoeiro e ourives.
Passou a fazer espadas em 1962. Comecei a fazer artesanato
(instrumentos agrícolas) quando estava na fazenda. Eu vivia
no meio do mato, não tinha cultura nem nada. Então,
à noite, eu tinha sonhos com colegas estudantes progredindo
e eu não. De dia comecei a fazer artesanato para esquecer
esse complexo. Quando saía um objeto perfeito dava a sensação,
conta. Ishida teve as primeiras lições através
de livros enviados por parentes do Japão. Depois, aprimorou
a técnica com Oura e Oda. Adaptou regras clássicas
do espadeiro, mudando desde o encaixe da lâmina até
a sua espessura. Os ornamentos em ouro, que aprendeu na antiga profissão
de origem, lembram muito as do movimento Fukkotô. São
mais de 300 as espadas de sua autoria. |